quinta-feira, 12 de maio de 2011

Tristes Verdades.


"Uma cruz branca erguida sobre a favela do morro dos Macacos marca o local onde pessoas são queimadas vivas. Um cavalo faminto, costelas saltando, está amarrado ali perto por uma fina corda. Um campo de futebol próximo está pontilhado de pedaços de borracha derretida. Partidas não são jogadas aqui. A "gangue" Amigos dos Amigos, que comanda a favela, tem um ritual: seus membros envolvem seus inimigos com pneus, os cobrem com gasolina e ateiam fogo. Isso é chamado microondas. Fumaça negra sobe no ar. Numa escola morro abaixo, perto do famoso estádio onde a cerimônia de abertura das Olimpíadas de 2016 será realizada, os estudantes ouvem os gritos e cobrem os ouvidos. Esse é o Rio na vida real."

Essa é a abertura do texto assinado por Wright Thompson, repórter-sênior do website da gigante ESPN. São doze páginas e vinte fotos que, à esta hora, já foram lidos por milhões de pessoas em todo o mundo, e mereceram o lugar de primeira matéria do Jornal da Globo desta quarta, por conta da repercussão negativa causada pelas impressões do jornalista americano.

Eu, que li o texto ontem bem cedo, fiquei surpreso. Afinal de contas, nenhuma das fotos foi photoshopada pela turma da Worldwide Leader In Sports. São todas reais, com seus policiais armados de fuzis, caveirões e vielas escuras, moradores aterrorizados e até um helicóptero da polícia em chamas, no chão, abatido por traficantes. Eu lembro, você lembra.

"Ah, mas peraí, alto lá! O Morro dos Macacos já tá com UPP, o lance do helicóptero tem um tempão..."

Sei.

A UPP dos Macacos foi instalada em outubro do ano passado, tem sete meses. O helicóptero foi metralhado ali em outubro de 2009, um ano antes.

Não me parece tanto tempo assim.

* * *

"As favelas, consciência culpada do Rio, quase mil delas, olham o paraíso de cima, mas não compartilham dele."

Thompson segue o texto lembrando que, em 2010, houve 4.798 assassinatos na cidade, o que representa um quarto dos assassinatos em todos os Estados Unidos no mesmo período - enquanto os EUA possuem 300 milhões de habitantes, o Rio tem 6. Cita que a primeira favela surgiu em 1897 e que agora a cidade tem menos de três anos para consertar uma crise que cresce há um século.

"O relógio está correndo."

É claro que a primeira coisa que vem à cabeça de muitos é o despeito de um americano, dos americanos, da ESPN e de toda a América pelo fato de Chicago, com Barak e tudo, ter perdido para o Rio na escolha da sede dos jogos de 2016. Mas isso faria mais sentido em 2009, antes da decisão dos membros do COI. Dar porrada agora, faz pouco ou nenhum. Assim como não faz afirmar que Thompson pintou o artigo com cores fortes. Quando diz que o filho pequeno do presidente da associação de moradores dos Macados ainda tem pesadelos com o dia da invasão do morro pelo CV - na véspera da derrubada do helicóptero - ele não está criando um factóide. Nem quando lembra que a ordem da invasão partiu de líderes do Comando Vermelho de dentro de um presídio de segurança máxima. Muito menos quando descreve como são as incursões do BOPE nas favelas, onde moradores são passíveis de balas perdidas e abusos de autoridade da polícia. Os ônibus queimados às dezenas pela cidade - outra triste memória recente - também não surgiram da imaginação do americano.

É tudo verdade. Uma verdade a qual eu e você, talvez, estejamos acostumados, lamentavelmente.

* * *

Na minha concepção, Thompson constrói seu artigo a partir da invasão do morro dos Macacos porque viu ali um ponto de ruptura.

Até então, apenas quatro UPPs haviam sido instaladas na cidade - a pioneira, no Dona Marta, em novembro de 2008, e mais três, no ano seguinte, na Cidade de Deus, no Batam e no Chapéu Mangueira. Depois do absurdo daquele outubro de 2009, outras 13 seriam criadas em igual período de tempo, incluindo a dos Macacos.

O americano também não inventa depoimentos. Como o de uma professora, que meses depois de ser entrevistada, quando sabe da publicação do artigo, pede para não ser identificada. Ela conta sobre a escola onde leciona, onde crianças do jardim de infância ficam doentes por brincar na terra contaminada por fezes - não há rede de esgoto ali. É ela quem lembra do caso de um antigo presidende da associação de moradores, nascido e criado nos Macacos, mas que teve que deixar o morro quando traficantes queimaram sua casa e ordenaram sua saída, por não terem gostado, justamente, de uma entrevista.

* * *

"Um ano após o helicóptero ter sido derrubado, os moradores do morro dos Macacos souberam da notícia - eles seriam os próximos. Em 14 de outubro de 2010, quase 200 policiais subiram o morro e o encontraram livre de todos os traficantes que o dominavam, fugidos na véspera, quando do aviso da invasão. Nenhum tiro foi disparado."

Thompson revela então o medo corrente de todo o qualquer morador de comunidade pacificada: que a polícia vá embora. E o tom sensacionalista que muitos aqui enxergaram - e que não vi em momento algum das doze páginas de texto - dá lugar à esperança, dele e de quem mora nessas codições.

"Mas agora, pelo menos, há esperança. Os dois Rios estão colidindo e, em alguns lugares, um novo Rio se levanta."

Mas ele não se deixa levar pela inocência. Lembra que a professora continua com medo. Que os traficantes não estão mortos. Que a polícia esperava encontrar 50 armas pesadas no morro e nenhuma delas foi apreendida. Que o antido dono do morro está hoje na Rocinha.

Faltou lembrar que a cidade tem 13 favelas pacificadas e outras mil sob domínio do tráfico ou das milícias.

"O sol está baixo e quente. A professora está de pé, do lado de fora da escola. Agora há policiais sorridentes em sua favela e o campo de futebol voltou a ser usado para partidas, em vez de matanças. Ela olha a cruz branca, no alto do morro. Olimpíadas vêm e vão. Governos se cansam."

E nós, macunaímas que insistimos em ser, continuamos achando que a opinião de quem enxerga de fora está sempre errada.

Não está.

Errados estamos nós.

E, como Mr. Thompson diz, o relógio está correndo.

5 comentários:

Laurão disse...

Concordo plenamente. Quando nós falamos entre amigos e nas nossas redes sociais acerca dos problemas do Brasil, está tudo bem. Quando alguém de fora vem e põe o dedo na ferida, todos ficamos indignados. Você está certíssimo. Eles não estão errados. Errrados somos nós.

Laurão disse...

Só pra complementar com um exemplo sobre o que falei. Até já houve uma propaganda veículada na mídia sobre isso. A história dos dois rapazes brasileiros numa vendinha e o balconista é argentino. Enquanto conversavam entre eles, os Brasileiros criticam os problemas do Brasil. Quando o Argentino se intromete na conversa concordando com os Brasileiros, a indignação dos Brasileiros foi imediata. Lamentável. Nós podemos falar. Os de fora, não. Parabéns pelo seu texto.

Edu Mendonça disse...

Lembro-me desse comercial. É exatamente por aí.

Mas, dessa vez, o que me impressionou foi o fato de que a nossa imprensa, de modo geral, caiu de pau num texto bem pensado, sem exageros ou mentiras que, muitas vezes, são mesmo marcas do tal "olhar de fora", ainda mais numa terra tão peculiar como a nossa. Fui pesquisar sobre o tal Wright Thompson, já trabalha no grupo espn há cinco anos e correu o mundo fazendo pautas especiais. Não me parece um Larry Rohter, aquele correspondente do NY Times que escorregava direto quando tentava descrever o Brasil para o mundo.

Em suma: nossa rebeldia, nesse caso, me parece sem causa. Abs!

Bolinho disse...

Pior que isso tudo é a quantidade de "cearenses" que apareceram na zona sul do Rio hj...

Edu Mendonça disse...

Ah, cara, na boa - Eu não entro mais nessas discussões e provocações do futebol com quem é daqui do Rio. Não tem cabimento, sentido.

O importante sobre ontem é que, mesmo eliminado, o Flamengo jogou como Flamengo, perdeu como Flamengo, foi roubado como tal e jogou bem, mesmo com um a menos. Cansamos de perder gols, T.Neves foi brilhante no primeiro tempo e até o dentuço jogou bem e com disposição. Que sirva para todos lembrarem que é isso o Flamengo. Dia 21, Macaé, certamente.